terça-feira, 7 de junho de 2016

CLARA  



Foram palavras tão afiadas que rasgaram completamente minha alma. Essa é a maneira mais sincera de descrever o que
se passou naqueles instantes. É até curioso como chegamos naquele momento. Não houve uma briga de casal.
Não existia nenhuma bolinha de conflito que foi se transformando em uma avalanche de gritos e palavras antes
nunca ditas. E que nunca deveriam ser ditas.
Nada disso aconteceu.
  Realmente não sei o que houve. Estávamos tão apaixonadas. Bom, da minha parte tenho certeza. Embora ache que
não seja possível emular amor de forma tão convincente. Ou talvez seja apenas ingênua mesmo. Não estou me
declarando uma vítima completa aqui. Longe disso. Quando ainda era humana cometi vários erros.
E observando a situação até certo ponto tenho plena certeza que foi um erro me envolver com Clara.
Apesar do nome ela mostrou-se bastante opaca - Sim, eu possuo um senso de humor bastante peculiar. Diria
até que são para poucos.
  Nos conhecemos através de amigos em comum e acabamos nos tornando bastante próximas. Éramos amigas que contavam
tudo uma para a outra. Que chorava junto na tristeza. E que ficava mais feliz pelo sucesso da outra do que o seu.
Nunca pensei que encontraria uma pessoa que me incitasse sentimentos tão agradáveis e momentos tão prazerosos.
Portanto, foi uma passagem bastante natural de abraços de despedidas a longos beijos demorados de reencontro.
Eu me sentia completa.
  E esse foi o meu maior erro - Logo depois de atravessar uma avenida com os olhos no celular, mas chego
já nesse ponto. Eu estava viva, mas dependia de outra pessoa para essa vida fazer sentido.
Agora enxero isso claramente - Olha só. Fiz de novo. Bem na sua cara.
  Embora eu perceba isso. Percebo também que ainda a amo muito. Daquele amor que dói, literalmente, na alma.
Porque amar machuca. E provoca feridas que são difíceis de curar. Mesmo depois da morte.
Pois é. Eu morri.
  Estou escrevendo isso do além. Bem assustador, né?
Mas se você quer saber mesmo: é bem mais chato do que aterrorizante. Não tem absolutamente nada para se fazer aqui.
Por isso que resolvi escrever. Só não sei ainda como vou publicar.
Talvez encontre algum médium ou possua uma caneta... - Apenas brincadeira.
...
  Eu voltei. Por mais incrível que isso possa parecer. Não adianta perguntar porque eu não sei como. Sei apenas que ninguém
nota minha presença e que adquiri um conhecimento extraordinário de informática e biologia.
O ácido desoxirribonucleico, bem como o protocolo kerberos nunca fez tanto sentido pra mim.
  Ao que tudo indica voltei para concluir um assunto inacabado - Não. Eu não voltei para puxar o pé de ninguém enquanto dorme.
E antes de voltar para o descanso eterno resolvi continuar escrevendo essas memórias póstumas.
Então vamos aos acontecimentos.
  Era um fim de tarde de outubro. Dia 17 para ser mais precisa. Tínhamos combinado de assistir um filme na casa dela.
O cenário estava perfeito: um filme de karatê mal dublado, pipoca velha e o som estridente do vizinho do lado.
Mas estava nos braços da Clara e isso era mais que perfeito.
  Porém percebi que não tinha muita conversa. Ela não costumava atrapalhar a sessão, mas sempre fazia comentários
engraçados - Um humor melhor que o meu. Vale ressaltar aqui. E não rolou uma mãozinha boba. Sempre me sentia atacada por
um polvo - De uma maneira boa, é claro. Se é que existe um lado bom nisso...
Ela apenas afagava meu cabelo de maneira mecânica. Eu sentia que ela não estava ali completamente.
  Após o filme fomos para a cama e foi a noite mais incrível que passamos juntas. Ela tinha se transformado numa labareda
de paixão e luxúria. Bem diferente da pedra de mármore de minutos antes. Ficamos exaustas e dormimos rápido.
Quando acordei, Clara já estava vestida e disse que tinha um compromisso no trabalho e só poderíamos nos ver no dia seguinte.
Eu detestava ficar sem vê-la. Mesmo que fosse só por um dia. E mais ainda quando ela aparentava essa indiferença.
Como se para ela estivesse tudo bem. Um dia, dois ou três semanas sem nos vermos... - Exagerada eu? Claro que não!
Apenas louca de amor.
  Quando cheguei em casa estava com um misto de alegria e tristeza. É difícil explicar. E sem falar nessa sensação que
me rondava. Agora tenho certeza do que era isso: o hálito da morte - Tentei ser tenebrosa e consegui apenas ser brega.
  O dia demorava a passar. Nem prestava atenção na rotina de tão rotineira que era. Queria apenas encontrar com Clara
no dia seguinte e dizer que a amava muito. Ela já sabia disso, mas ainda assim sentia que precisava dizer isso a ela.
Precisava tanto que mandei uma mensagem logo antes de me deitar.
  É ótimo acordar com uma mensagem desse tipo, não é?
E sabe que tipo de mensagem não é legal de se receber assim que acorda?
"Precisamos terminar"
  Selecione as letras certas, forme as sílabas corretamente e você obterá frases que são como facas banhadas em lava e veneno.
"Como assim?"
"Estou com outra. Adeus."
  Já havia ficada sem reação diversas vezes. Momentos constrangedores, situações inusitadas e até ocasiões perigosas. Mas ali
eu fiquei sem nada. Completamente. Posso dizer que a primeira vez que morri foi naquele instante. Não tinha forças nem para teclar.
  Após um bom tempo imóvel consegui ligar, mas ela já não me atendia. Enviei uma nova mensagem.
"Estou indo para a sua casa. Vamos conversar."
Fui novamente ignorada.
  Eram golpes terríveis que eu estava recebendo. E doíam mil vezes mais, pois estavam sendo dados por uma pessoa que eu amava 
mais do que um milhão de vezes.
  Me vesti rápido e ainda na saída de casa enviei minha última mensagem. Eu ia dizer que foi sem pensar, mas na verdade foi sem
orgulho, sem egoísmo, sem raiva. Foi um minúsculo espaço de tempo onde eu me sentia livre de qualquer influência ou sensação - Vide
hálito da morte.
E sem pensar enviei:
"Precisamos ficar juntas"
  Enquanto aguardava uma improvável resposta, andava apressada e tropeçava na vida das outras pessoas. Desastrada por natureza, privar-me
voluntariamente de um sentido tão importante, como a visão, não foi uma decisão muito esperta.
Andava seguramente na faixa de pedestres enquanto olhava fixamente para a tela em minhas mãos. Por isso não notei a luz vermelha insistente
proibindo a passagem.
  Antes de desmaiar consegui ouvir o som de algo se esfacelando. Ainda não sei ao certo o que era. Não importa. A única coisa que sei é
 que vi com clareza - Esse foi sem querer - um alerta de mensagem recebida.
Clara tinha respondido tarde demais.
  Chegamos então ao assunto inacabado. Aparentemente muitos espíritos voltam à terra para resolver assuntos pendentes.
Muitos estão furiosos, outros assustados e alguns apaixonados. Esses últimos são os mais perigosos.
  Conseguir achar o celular não foi fácil. Tentei o hospital, minha casa, o necrotério. Nada.
Pensei que ele poderia ter sido roubado. Fui em todas as casas da cidade. Sério. Vi coisas que nenhuma fantasma
deveria ver.
Só evitei uma casa.
Não queria vê-la naquele momento. Porém minha curiosidade venceu minha atitude reticente.
  O aparelho estava em cima da cama. Várias baterias, carregadores e cabos estavam espalhados no colchão.
Ele estava bastante danificado. Tela rachada, amassados e ranhuras. O pacote completo de estragos. Igual a mim - Humor estranho. Eu sei.
Foi fácil ligá-lo porque como já havia dito: especialista em natureza e tecnologia.
E lá estava a última mensagem recebida:
"Precisamos ficar juntas"
"Quem sabe numa próxima vida"
...
  Eu tentei ficar furiosa, mas não conseguia. Estava amando-a mais. Era como se eu soubesse de algo que ainda fosse saber.
Bem difícil de entender. Mai difícil do que o complexo de golgi ou iptables.
Olhei ao redor e vi que o quarto estava um pouco vazio. Na verdade a casa toda. Só que não era um vazio de mudança.
Era um vazio de vida.
Imediatamente fui encontrá-la.
Novamente. Não sabia onde ela estava, mas sabia como chegar até ela.
  Haviam se passado apenas três meses desde que morri, mas ela já estava sem nenhum fio de cabelo e com menos da metade
do peso original. Os olhos fundos e a expressão cansada não lembrava em nada a pessoa deslumbrante que eu conheci.
Escutei os médicos dizendo que ela não estava lutando. Desistiu antes mesmo de dar entrada.
Bisbilhotando bastante, achei documentos que informavam a data da primeira consulta. 17 de outubro.
  Entrei no quarto e ela sorriu. Um sorriso tímido de canto de boca. Mas ainda assim foi o sorriso mais deslumbrante que 
jamais tinha visto. Sentei-me na beirada da cama pra escrever essas linhas finais enquanto espero minha Clara.

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