quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Num reino qualquer


Certa vez num reino não tão distante havia um rapaz que não falava.
Ele era secretamente apaixonado por uma jovem de uma aldeia vizinha.
Adoraria se declarar, mas como faria isso? Sem poder falar todas as alternativas soavam ridículas.
Após muito pensar, resolveu encontrar-se com o feiticeiro mais antigo e mais recluso do reino.
Esse feiticeiro era conhecido por resolver qualquer problema por mais difícil que fosse.
Entretanto, o preço que cobrava era pra poucos. Os poucos que estavam realmente dispostos.
Ao chegar na morada do feiticeiro o rapaz não encontrou ninguém. Ouviu apenas o seguinte:
Apanhe o cajado que está na sua frente ou vá embora.
O rapaz apanhou o cajado e no exato momento que o fez ficou cego.
Gritou assustado e percebeu que podia falar.
Ele havia conseguido o que queria.
Partiu imediatamente dali utilizando o cajado para guiar-se.
Com grande dificuldade encontrou a moça que amava e declarou-se de maneira magistral.
Não ganhou apenas a fala, mas uma eloquente dicção que agradava a todos os ouvidos.
A jovem ficou verdadeiramente encantada, porém confessou-lhe que sua maior paixão era pintar.
E adoraria um companheiro que pudesse apreciar seus trabalhos, criticar e lhe apoiar no que fosse preciso.
Desolado, o rapaz voltou à residência do feiticeiro e novamente não encontrou ninguém.
Ouviu apenas o seguinte: Deixe o cajado no chão ou vá embora.
No momento que largou o cajado no chão, voltou a enxergar.
E a primeira coisa que viu foi uma enorme tabuleta de pedra.
Saiu correndo de lá e a medida que avançava percebeu que tudo estava muito quieto.
Mesmo com essa constatação foi ao encontro de sua dama, até então, inalcançável.
A moça ficou verdadeiramente feliz ao saber do aparente milagre que havia ocorrido.
Correu então para mostrar-lhe todas as suas pinturas e desenhos.
A jovem radiante notou que o rapaz estava muito calado.
Ao questioná-lo não obteve resposta. O rapaz já não ouvia.
Quando percebeu isso a moça entristeceu-se profundamente e escreveu-lhe um bilhete.
Nele dizia que ela realmente gostava dele. Isso o deixou feliz.
O que o deixou triste foi saber que os pais dela eram os instrumentistas mais respeitados do reino.
E costumavam dar grandes festas ao ar livre sempre com muita dança e música.
Ela precisava de alguém que se divertisse junto e apreciasse a arte de seus pais.
Após ler aquilo o rapaz voltou imediatamente para a casa do feiticeiro.
Ao entrar deparou-se com centenas de rosas vermelhas espalhadas no chão.
Olhou para frente e leu em voz alta o que estava escrito na tabuleta:
- Leve uma rosa e nunca mais volte.
Fez o que lhe foi instruído e enquanto caminhava para fora dali ouviu um trovão ao longe.
Pouco tempo depois passou a escutar a chuva que havia começado.
Olhou para o céu, abriu os braços e apreciou a precipitação.
Não sentia mais as gotas que caíam.
A moça ficou novamente surpreendida.
E exultante de tremenda felicidade deu um abraço apertado no rapaz seguido de um longo beijo.
Ele não sentiu nada.
Inspirada com o vermelho vivo da rosa, a jovem alcançou diversas tintas e prostrou a pintar sem demora.
Combinou também com o rapaz de se encontrarem a noite para que ele conhecesse seus pais.
O rapaz despediu-se dela e estranhamente não sentia nada.
Voltou para casa e esperou a noite chegar.
Quando já estava quase pronto para sair ele ouviu uma batida na porta. Era a moça.
Ela estava belíssima. Usava um vestido deslumbrante, uma tiara dourada e a rosa destacava-se nos seus cachos negros.
Ele ficou surpreso ao vê-la.
Imediatamente ela perguntou-lhe onde ele havia arranjado aquela rosa.
Ele tentou desconversar, mas ela insistiu dizendo que aquela rosa foi o melhor presente que já havia ganho.
E que ficaria muito agradecida em poder apreciar mais daquela beleza natural.
Ele estava olhando pra ela. Não sentia nada.
Ela o beijou e implorou mais uma vez.
Ele continuava olhando pra ela. Não sentia nada.
Porém concordou por fim.
Segurando em sua mão o rapaz guiou a jovem até a casa do feiticeiro.
Dessa vez haviam muito mais rosas. Não era possível ver o chão.
Enquanto rodava no meio daquele mar vermelho a jovem ria e cantarolava.
Ela entregou-lhe uma rosa e enquanto aninhava-se em seus braços perguntou o que ele achava daquele perfume.
Doce e inebriante, ele lhe disse.
Ela concordou e enquanto deitava a cabeça no peito do rapaz ia ficando cansada.
O rapaz sentiu os olhos pesarem e sentou-se no chão puxando-a pra junto de si.
Deitaram-se entre as milhares de pétalas.
Ele não sentiria mais nada.

domingo, 4 de setembro de 2016

Winter On Fire: Ukraine's Fight for Freedom


Transportar. Essa é uma ótima palavra para descrever o que se passa ao assistir Winter on Fire.
Com a câmera no meio do povo, o documentário produzido pela Netflix percorre os 93 dias da ocupação de Maidan, praça central da capital Kiev. E, sem exagero, é possível sentir toda a angustia, medo e revolta.

Através de uma rápida apresentação ficamos a par da situação do país. A Ucrânia, que já havia se declarado independente em 1991 da União Soviética, elegeu Viktor Yanukovych. Viktor era um candidato pró-Rússia que prometeu assinar um acordo de livre comércio com a União Européia (UE). Com o país em dificuldades econômicas quase metade dos ucranianos acreditava que essa integração deveria acontecer. Entretanto, Yanukovych ignorou o acordo e se voltou secretamente para a nação de Putin.

Devido o acordo não ter sido assinado, em 21 de novembro de 2013 um protesto espontâneo ocorreu em Maidan. Diversas pessoas - estudantes universitários em sua maioria - se reuniram para demonstrar sua insatisfação e em troca foram agredidos pela Berkut, uma polícia especial do governo. Os protestos passaram então a ser não apenas pela integração Européia, mas também pelo direito de liberdade e de expressão como cidadão.

"Todos juntos somos fortes" e "Kiev, fique de pé" eram frases entoadas pelas pessoas presentes na "marcha dos milhões". Essa marcha, que não foi a única, tinha como destino o palácio presidencial. Dessa vez gás lacrimogênio e bombas de efeito moral foram os protagonistas do embate entre a polícia e o povo, deixando espaço ainda para o sangue que se via por todo lado.

Enquanto uma reunião ocorria com representantes dos EUA e UE a Berkut tentava tomar a praça. Unindo os braços e cantando o hino, os resistentes de Maidan conseguiram impedir o avanço da polícia. Depois desse episódio, barricadas foram construídas com sacos de neve, estacas, pneus e arames para isolar o local. Militares reformados ensinaram as pessoas como se defender de maneira
eficaz e os líderes religiosos estavam do mesmo lado.


Maidan em 31 de dezembro de 2013


Após a virada do ano, foram aprovadas várias leis com caráter ditatorial. Por exemplo, o governo poderia bloquear a internet a qualquer momento e era proibido  usar capacetes. De forma irônica, diversas pessoas passaram a sair com escorredores de macarrão na cabeça e uma outra marcha iniciou-se até o parlamento para contestar essas novas leis. A Berkut bloqueou novamente o caminho e com a ajuda de Titushkis (mercenários que cumprem qualquer ordem em troca de
dinheiro) espancaram civis exaustos. Balas de barrocha deram lugar a balas reais e o centro de remédios e curativos foi destruído. Estava instaurado um cruel conflito entre o povo ucraniano. Polícia contra população.

Os militantes que protestavam nos carros (a AutoMaidan) tiveram seus automóveis destruídos, retirados dos próprios veículos e levados para continuarem sendo espancados. Isso foi feito graças uma parceria entre a Berkut e a polícia de trânsito. As filmagens desse momento são bem tensas e é possível sentir o medo das pessoas que eram surpreendidas na estrada.

Em fevereiro de 2014, três pedidos foram feitos: liberação dos presos políticos, igualdade de poderes entre o parlamento e o presidente e, por último, a antecipação das eleições. Para serem ouvidos, uma marcha pacífica foi organizada, mas não conseguiu chegar ao parlamento. A Berkut aguardava juntamente com os Titushkis. Estes últimos estavam mais organizados e faziam o que a polícia não podia fazer.

Os manifestantes que voltaram para Maidan depararam-se com franco-atiradores. O cenário era de diversos mortos. Pessoas arrastando feridos em meio a uma chuva de balas. pessoas defendendo-se apenas com um escudo de madeira, pessoas sangrando até morrer. O inferno era ali.
Após esse episódio, o povo exigiu a renúncia de Yanukovych ou entrariam em um confronto armado.
A polícia de choque recuou e o presidente fugiu do país.

O filme nos mostra uma história real e recente perturbadora. O governo, que deveria servir ao povo, não aceitou contestação e utilizou seu braço policial para dialogar. Um protesto que iniciou-se com o sentimento de insatisfação evoluiu para a defesa dos direitos humanos e contra o abuso de poder.
O mais terrível é saber que essa história ainda não acabou.
O governo interino assinou o acordo de associação com a UE, a Rússia considerou a revolução como um golpe de Estado e invadiu a Crimeia (território pertencente à Ucrânia). Além disso, protestos pró-Rússia despontaram no país iniciando uma guerra civil no Leste que dura até hoje.