quinta-feira, 1 de março de 2018

Um conto de carnaval


Ju estava fascinada com o colorido. A alegria da menina era contagiante. Ela pulava, ria, batia palmas e se sacudia nos ombros do pai que mantinha a garota apoiada nos ombros. Tomas também estava se divertindo, mas não conseguia afastar o pensamento de que muito provavelmente aquela seria a última festa de carnaval em família.
  Ele e Laura conversaram bastante no começo de janeiro. Decidiram tentar novamente. Afinal, ele reconhecia que estava ausente. Principalmente com a filha que acabara de completar cinco anos.
  E foi justamente na festa de aniversário da garota que Laura não conseguiu suportar a culpa que carregava consigo. Acabou sendo mais fácil despejar sobre o marido as três vezes em que manchou o relacionamento de adolescência.
  Depois de assoprar as velinhas Ju deu um beijo na bochecha do pai. Laura que mal conseguia conter as lágrimas e segurar a menina nos braços ainda teve que ouvir a filha implorando por uma fantasia de pirata pra foliar.
  Saber que a filha o estava esperando fez com que Tomas chegasse dois dias depois de ter partido decidido a perdoar. E também a ser perdoado, pois não tinha encontrado a bendita fantasia de pirata.
  Mesmo assim Ju ficou satisfeita vestida de marinheiro enquanto tentava alcançar as cabeças gigantes que passavam perto dela.
  A noite estava sem estrelas no céu. Talvez isso fosse um capricho do universo pra destacar a lua exuberante que ornava o firmamento e iluminava as ruas de Olinda. E era pra esse ponto brilhante que Laura olhava insistentemente. A lua trazia lembranças da mãe que tinha partido antes da hora. Sílvia - ou Sil, como gostava de ser chamada - sempre falava dos poderes lunares. E não era de uma forma alegórica com o intuito de passar uma lição.
A história preferida de Laura era a da purificação.
  Sil contava que sempre na última lua cheia do mês o espírito da noite descia à Terra pra purificar as almas impuras. Esse espírito vinha na forma de uma gata negra. Quem avistasse a gata deveria lhe dar pouco de leite frio. A bebida representava os pecados das pessoas. Se a gata não bebesse tudo significava que as ofensas não eram tantas. Mas quase sempre o animal se enroscava nas pernas do pecador pedindo mais.
  Laura nunca se deu ao trabalho de procurar tal espírito da noite, mas nas três vezes que ficou com o antigo colega de escritório, bebia um copo de leite gelado. Ela dizia pra si mesma que era um ato inconsciente. No fundo ela sabia que não era verdade.
  E ali, mesmo estando no meio de centena de pessoas, ela tentava acreditar que tudo estava bem. Bem no fundo ela sabia que aquela seria a última festa de carnaval em família.
  As pessoas vinham de todos os lugares. O amontoado de gente já estava tornando aquele ambiente insuportável. Aquela espécie humanóide ancestral não parecia se importar com tamanho desconforto. Como aquilo podia ser considerado divertido?
  As figuras aparentemente famosas haviam sido agigantadas de tal forma que tornava toda a festa um espetáculo bizarro e de muito mal gosto. Mas mesmo assim todos estavam se divertindo. Principalmente as crianças.
  E eu só estava ali por causa de uma delas. Uma bem especial. As pessoas nessa época a conheciam pelo nome de Júlia - ou Ju. Aquela que daria início a uma linhagem de humanos corrompidos. No futuro eles seriam chamados de alegorias. Uma espécie que estava destruindo todo mundo. Por isso um grupo de cientistas me enviou do futuro pra eliminar a fonte do problema. “Júlia, a Fonte”. É assim que as alegorias se referem à mãe deles.
Do contrário ela os mata.
Ju foi a primeira a perceber o princípio de confusão. Um brilho trespassou os olhos de todos os bonecos gigantes. No mesmo instante a estrutura dos bonecos foi alterada de uma forma inexplicável. O machê da composição foi esquentando pouco a pouco. O vapor que emanava dos personagens não permitiu que os foliões vissem a  transfiguração que ocorria. A carne dos carregadores, que até então eram a “alma” dos bonecos, foi fundida à madeira de apoio e se entranhou ao isopor dos gigantes que agora estavam vivos.
  No primeiro grito de Ju três pessoas foram esmagadas pelas mãos terrivelmente poderosas da versão gigante de Elba Ramalho. Segundos depois um Reginaldo Rossi colossal estraçalhou uma mulher como se esmagasse manteiga. As entranhas da pobre coitada caíram a poucos centímetros de Laura que estava completamente paralisada de terror.
O pânico inundou a estreita rua da cidade que já estava inundada de sangue.
  Os bonecos gigantes aparentemente não tinham um objetivo. Parecia até que eles só queriam matar o maior número de pessoas que pudessem. Embora parecessem pesados esses monstros do carnaval eram extremamente ágeis. Os ataques eram precisos e fatais.
  Três crianças estavam abraçadas num canto e só tiveram tempo de olhar pra cima antes de serem transformadas em uma pasta indistinguível de carne morta.
A agente 672 viu aquela cena, mas não teve muito tempo pra lamentação. Afinal ela estava ali por apenas uma criança: Ju.
  Ainda era possível vislumbrar o meu alvo ao longe, pois o pavor não havia descido a criança. Ele estava tão aterrorizado quanto sua companheira. A posição deles também era boa para uma aproximação rápida já que o ataque dos gigantes estava acontecendo a poucos metros à frente da família. Mas como eles estavam sendo arrastados por uma multidão desesperada eu tive que agir rápido.
(Se eles tivessem ficado só um pouquinho mais rápido meu trabalho teria sido facilitado...).
  Infelizmente eu estava impossibilitada de passar por conta das centenas de pessoas que quase formavam um tringon em alta velocidade.
  Decidi ativar o ícarus pra sair do chão. Um disparo seria mais que suficiente. E eu nunca havia errado um tiro. Principalmente um aéreo.
  Foi quando o monstruoso Alceu Valença se virou e os encarou. Foi naquele momento que Tomas se moveu por conta própria, pois ele já estava sendo arrastado  involuntariamente pela turba ensandecida.
  Laura, milagrosamente ainda estava agarrada ao marido. Ela também conseguiu despertar do aparente transe em que estivera e fazia o máximo de esforço pra correr a toda velocidade. Ela não podia perder a família.
  Não havia uma explicação, mas alguma coisa lhe dizia que aquilo era culpa dela. Essa sensação não fazia sentido, mas não a largava. Assim como a enorme mão do Alceu que suspendeu ela com imensa facilidade.
  Quando estava sendo alçada, Laura ainda conseguiu ver uma mulher voando. Aquilo só poderia ser um delírio pré-fim inevitável. Ou talvez o espírito lunar.
  Imediatamente ela sentiu suas costelas se partindo e o gosto de ferrugem veio a tona. Aquela história de que toda sua vida passa diante dos seus olhos na hora da morte é pura bobagem. Ela só conseguia pensar nos pecados que havia cometido.
E bem ali naquele momento de dor intensa, abriu um sorriso. Ela sorriu porque não teria mais que sentir culpa. Era o fim de tudo... chega de arrependimentos… ela...
Não conseguiu completar.
….
  Eu estava com a fonte na mira. A rajada solar concentrada iria pulverizá-la… e boa parte dos que tivessem ao redor. Mas um certo efeito colateral já era esperado. E nenhum daqueles humanóides iria impactar o futuro de maneira tão agressiva quanto aquela criança.
Mas algo fugiu do meu controle.
Algo tão poderoso que me arrastou de volta para o futuro.
  Eu me virei a tempo de ver a mãe da fonte dar seus últimos suspiros. Foi uma cena terrível. Acho que algo na morte dela desencadeou uma ruptura temporal que desestabilizou o universo. Talvez também porque ela estava grávida - embora ela ainda não soubesse disso.
Portanto, como Lu não nasceu o futuro foi alterado consideravelmente.
  Mas eu estou apenas teorizando aqui já que ninguém se lembra de como as coisas eram.
Na verdade ninguém se lembra de mim. A agente 672 nunca existiu. Me tornei um paradoxo. E sou a única que pode acabar com as alegorias que agoram estão mais poderosas e em maior número.
  No outro dia o que se testemunhou foi uma carnificina nunca vista antes em nenhuma parte do mundo. Carcaças humanas estavam amontoadas.
O cheiro era indescritível.
  Os poucos que sobreviveram lembram que houve um grande clarão branco. Sem som. Apenas o mais puro branco. Após isso os bonecos gigantes entraram em combustão espontânea e viraram cinzas. A matança tinha, por fim, acabado.
No fim de tudo a única criatura viva era uma gata preta que bebia o sangue de Laura.
  E esse é o fim da história como ela é contada pela Fonte. Todas as palavras foram transcritas sem alterações. O desejo da Fonte é que todos saibam a verdade como ela é.
Nosso dever é proteger a Fonte.
Faremos tudo pela Fonte.
Manifesto das Alegorias. Capítulo 1.

Nenhum comentário:

Postar um comentário